Redescobrindo a relação a dois

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Falar de relação a dois implica em antes discutir e refletir sobre a construção do EU. E como se “formata” este EU? Sim, estamos na época onde “coisas” são formatadas, criadas em série, sem o devido esmero e cuidado humano. A identidade totalmente vinculada ao desenvolvimento do SER em uma sociedade onde o TER é o foco. E a relação a dois torna-se o espelho desta falta de SER, do vazio existencial que é encoberto pelo consumismo excessivo. E como tudo isto se inicia?

Há o mito de NARCISO, de onde deriva o termo NARCISISMO, e que delineia bem o que desejamos discutir. Falaremos bem resumidamente deste mito, sem entrar em seus detalhes. Narciso era cortejado por diversas Ninfas (corresponde ao feminino) e, no entanto, não se relacionava com nenhuma delas, magoando-as com sua falta de atenção e cuidado. Acaba, então, apaixonando-se por sua própria imagem que enxerga refletida em um lago. Passa dias e dias sem se alimentar, observando e namorando a própria imagem, intrigado em como ela faz o mesmo que ele. Ao final, sem agüentar tanto distanciamento, decide jogar-se no fundo do lago para encontrar aquele “ser fenomenal”. E morre. No lugar onde falece, nasce uma flor que passa a ser chamada Narciso. E qual a relação disto com a construção da identidade?

Quando nascemos, precisamos totalmente do cuidado dos pais. Sem estes, morremos. Somos totalmente ligados a nossa mãe, que nos alimenta e percebemos esta como um prolongamento de nós mesmos. Não há ainda noção de separação, de indivíduo. Durante o crescimento e desenvolvimento desta criança, ela começa a perceber que a mãe é um ser separado dela. Esta mãe cumpre outras funções além de cuidar do próprio filho e isto é notado pela criança. No entanto, há mães que devotam totalmente a sua vida ao próprio filho e isto dificulta ou impede totalmente, esta separação necessária ao desenvolvimento da própria individualidade. O fato de a criança tornar-se independente da mãe e do pai é fundamental ao desenvolvimento de sua personalidade. Independência conquistada aos poucos, respeitando sua capacidade e fase de vida. Os limites são fundamentais na construção da personalidade deste novo ser. No entanto, é exatamente aqui que se encontra uma das maiores falhas atuais. Os pais perdem-se neste momento e criam, sem perceber, filhos que passam a acreditar que o mundo está ali para servi-los. Criam “Narcisistas” que se relacionam com o outro acreditando, sem perceber, que o outro é instrumento para satisfazer as suas necessidades. Como na Mitologia, são crianças e futuros adultos que só vêem sua própria imagem, suas próprias necessidades, sem ouvir ou perceber a existência do outro.

Nossa cultura reforça tal postura, modo de ser e comportar-se. Com a excessiva valorização do ter, em detrimento da valorização do SER, com o estímulo ao INDIVIDUALISMO, reforça a produção em série de indivíduos extremamente egocêntricos, egoístas, moldados nos modismos, materialistas, injustos, onde impera a praticidade e a falta de afetividade. E será possível deste modo, construir relações felizes?

Construir relações felizes demanda amor. E o que é o amor? Muitas vezes sabemos o que é um elefante, mas não sabemos defini-lo. Mas sabemos o que mantém um elefante. O AMOR, por sua vez, implica na força de atração entre duas pessoas, admiração e desejo de unir-se ao outro. As relações baseadas no amor necessitam de várias coisas para se manter. Destaco algumas que acredito serem fundamentais: RESPEITO ao outro e a si mesmo, ACOLHIMENTO (dar ao outro o direito de sentir, pensar, existir, perceber, fazer), CUIDADO, EMPATIA (colocar-se no lugar do outro), COMPROMETIMENTO (envolvimento e aceitação das responsabilidades assumidas quando há uma escolha voluntária de acompanhar e construir uma vida a dois), DESEJO pelo outro e de trocar, construir. A relação a dois se mantém a partir de uma escolha refeita a cada dia: “eu quero estar, construir, viver com você”.

Atualmente, no entanto, muitas uniões partem de uma relação Narcísica, onde um “serve total e irrestrita” às vontades do outro. Não há troca, algo difícil para pessoas que muitas vezes não tem o que dar. Sim, dar afeto é muito difícil para aqueles que só receberam sem nada ter que dar ou que nunca receberam nada. Fica difícil dar afeto para aqueles que só ganharam brinquedos dos pais, para suprir a falta de amor. E vejo em escala crescente em meu consultório o número de pessoas que não acreditam mais que exista relacionamento baseado no amor. E que o amor é algo ilusório. Dados preocupantes, tendo em vista a escalada da violência que vivenciamos. Violência e amor, pólos opostos. A sociedade também se mostra reflexo do que ocorre nos lares e vice-versa. E as relações se tornam enfraquecidas. Solidão, ginástica sexual (e não relação sexual), desempenho sexual (e não troca e entrega sexual)… consumo do outro (e não crescimento e construção de relações saudáveis).

Mas ainda há esperança! O quadro pintado durante o texto é parte do que vemos, mas não o quadro inteiro. A parte que falta, cabe a nós construir! Em nossas relações diárias, nas escolhas que realizamos a cada dia. Somos sementes de um viver melhor… Somos escritores de nossa própria história!!! Por vezes não percebemos a importância de nossas atitudes e o reflexo destas em nosso modo de nos relacionar. Criamos relacionamentos em função do que somos, acreditamos, vivemos. Não existem duas realidades iguais para um mesmo fato e não existem duas relações iguais em um mesmo casal. E a disponibilidade em se rever, transformar, melhorar, trabalhar são fundamentais no grande desafio de se relacionar. A Psicoterapia surge como ferramenta que pode auxiliar no resgate de si, para que então, o EU verdadeiro possa se relacionar com o OUTRO. Atua no desbloqueio das emoções que contemos ao longo da vida e que se refletem em nosso viver cotidiano, facilitando a elaboração destas. Metaforicamente, a Psicoterapia auxilia a transformação da larva em borboleta. E, então, pode surgir o indivíduo genuíno, desfeito de sua capa de defesa (Narcisismo excessivo, anulação, incapacidade de ser e de deixar o outro viver…), que o impede de se relacionar com o outro.