Por Adriana Marques dos Santos*
Pergunta instigante que somos obrigados a confrontar em nosso cotidiano. Em um domingo desses, na Revista do Globo, li uma frase na matéria da Capa que me chamou a atenção: “Trair é normal.” O pequeno artigo referia-se ao estado atual dos casamentos, colocando a traição como algo normatizado socialmente. Como sempre escrevo sobre as coisas do cotidiano, partindo da experiência clínica, além das observações e leituras pessoais, refleti sobre algumas coisas que acho que interessaria a você, caro leitor, pensar junto. Quem sabe até retornar por e-mail suas reflexões sobre este tema. Coloco-me a disposição no e-mail adriana.psi@gmail.com.
A primeira coisa que pensei: o que é normal? Se partimos do conceito estatístico, normal é aquilo que é freqüente. Então, nem sempre o que é normal é aquilo que eu necessariamente necessito seguir, mas aquilo para o qual sou pressionado diariamente. Há uma pressão no sentido de colocar determinados comportamentos como norma social. A mídia é um dos principais meios de “normatização”. Através da mídia há a tentativa de criar padrões ditos “normais”. Nada do que lemos é isento ou neutro. Tudo está dentro de um contexto e de uma busca de criação de novos conceitos. Afinal, colocar as coisas em geral como “normais” são formas de pressionar a massa para a construção de um “todo” homogêneo e facilmente manipulável.
O segundo tópico que surgiu: o que é na realidade trair? Ouço em minha clínica diária uma série de conceitos de clientes sobre o que é traição. Para alguns é o rompimento de expectativas que se tem sobre o outro parceiro. Partindo deste conceito, qualquer coisa que o outro realize fora de minhas expectativas, seria traição. E este tipo de atitude, segundo o que observo, produz as verdadeiras frustrações, pois o outro não é, nem nunca será exatamente aquilo que se espera dele. Para outros trair é romper contratos, compromissos, acordos do par. Algo que podemos questionar: será que estes acordos estão explícitos para ambos? Então para um casal que mantém uma relação aberta, ter relações sexuais com outros parceiros não constitui traição. Enquanto que para outro casal que se propõe a ser monogâmico, constituiria uma quebra de acordo. Há ainda outros questionamentos a respeito: pensar e não realizar, é traição? Não ter a intenção de chegar ao ato, mas concretizá-lo é traição? Atuar com a intenção é traição? Enfim, percebemos que os conceitos de traição são os mais amplos possíveis, de acordo com aquilo que cada um deseja e assume como essencial para que o relacionamento funcione. Cada casal com sua história e cada ser humano com seus desejos e acordos, explícitos ou não.
Um terceiro tópico que surge neste momento é o quanto a distância entre o que desejamos e o que na realidade construímos pode ser a real ponte para grandes traições. Falamos de traições em relação ao outro, mas esquecemos de falar sobre a traição a si próprio. Quando não temos clareza sobre aquilo que é fundamental e deixamos de lutar por nossos reais desejos. Este abismo é facilmente criado pelo modelo de relacionamento que é cada vez mais comum nos dias de hoje: o casal que pouco conversa, compartilha quase nada e, cada um na sua individualidade cria o seu mundo próprio, no qual o outro pouco transita. De preferência, não se permite que o outro adentre neste mundo, pois “pode ser uma ameaça a individualidade”. E assim, confundimos cada vez mais a individualidade com individualismo. Ser um indivíduo implica em colocarmos para o outro aquilo que somos e nos relacionarmos para construir algo em conjunto, respeitando as diferenças. Mas, ser individualista, não permite a troca, o compartilhar e as mudanças que o relacionamento possibilita. Quando há relação de verdade, o casal se transforma, porque ambos se modificam continuamente na relação consigo, com o outro e com o mundo.
Casais saudáveis têm o que compartilhar com o outro, porque vivem profundamente sua individualidade, sem tornarem-se individualistas. Respeitam ao próximo porque sabem se respeitar inicialmente. Colocam o seu desejo e ouvem também o desejo do outro. Fazem acordos, diferente de quando se está sozinho: o único acordo possível é consigo próprio. Quando existe o outro, existe negociação, perdas e ganhos, transformações. Quando se está sozinho, o único acordo plausível é consigo próprio. Ambas as escolhas têm prós e contras, como tudo na vida.
Partindo destas reflexões iniciais, o que percebo em minha clínica? Pessoas cada vez mais buscando um relacionamento, com extrema dificuldade de mantê-lo ou conquistá-lo. Rosa Montero (autora de “A louca da casa”), escritora espanhola, em seu livro “Pasiones”(edição espanhola) diz: “A paixão é mais valorizada nas sociedades mais individualistas, pois ela constitue um modo de nos sentirmos indestrutíveis…” (Pasiones – Montero, R. p. 19). A indestrutibilidade a partir da fusão com o outro, em função de buscar no outro aquilo que é igual a mim. Não há espaço na paixão para a diferença, só para o reconhecimento especular do outro, ou seja, daquilo que existe em comum. O amor , ao contrário, surge com a aceitação das diferenças e do manejar diário delas, com os acordos e respeito mútuo. Talvez este seja um dos motivos pelos quais tenhamos que nos perguntar: para mim, trair é normal? Independente do que diz a mídia, o que para mim é aceitável e o que desejo para minha vida, em meu relacionamento? Estou sendo clara com meu parceiro acerca disso? Os acordos são explícitos?
Neste grande caldeirão de possibilidades que é a vida, o processo Psicoterápico constitue um caminho para o re-encontro consigo próprio para, então buscar construir relações genuínas e saudáveis com o outro. Construir ou reconstruir a partir do encontro consigo próprio, para então ser com o outro e não ser o outro. Construir juntos, com respeito, acordos explícitos é um dos grandes desafios dos relacionamentos da modernidade. Isto porque o encontro consigo próprio no meio de tantos estímulos, implica em dizer para si mesmo o que eu quero e o que não desejo. E para isso, é preciso coragem e auto-conhecimento: um caminho que pode ser bem construído através de um bom processo psicoterápico.
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